sexta-feira, 19 de junho de 2009

Jornal Público - "Uma ópera em construção"



Na produção de Let's Make an Opera!, que hoje se estreia na Gulbenkian, o ambiente doméstico oitocentista que deu origem à famosa ópera para crianças de Benjamin Britten é transportado para uma escola do século XXI.

Como se faz uma ópera? A pergunta é simples e breve, mas a resposta é longa e diverge por muitos caminhos. Mas é também fascinante, sobretudo quando podemos participar no processo. A ideia já estava implícita quando o grande compositor britânico Benjamin Britten (1913-1976) criou em 1949 Let's Make an Opera! - An Entertainment for Young People (Vamos fazer uma ópera! - Um entretenimento para jovens), uma obra com libreto de Eric Cozier que coloca em cena uma família cujas crianças, sem nada para fazer durante as férias, decidem montar uma ópera intitulada The Little Sweep (O Pequeno Limpa-Chaminés).

O actor e encenador Paulo Matos foi mais longe e realizou uma versão portuguesa com um novo texto teatral que coloca a acção inicial numa escola do século XXI. Integrado no projecto Descobrir - Programa Gulbenkian Educação para a Cultura, o espectáculo estreia hoje, às 20h00, no Grande Auditório Gulbenkian e ficará em cena até dia 30. A direcção musical é de Osvaldo Ferreira e o elenco envolve 37 crianças e jovens, além de vários cantores profissionais.

A maior parte das crianças gosta de desmontar os brinquedos para ver como são feitos. Em larga escala e num processo inverso, pois aqui trata-se de construir, há um paralelo dessa atitude nesta encenação. "O projecto original de Britten tem um cariz pedagógico e essa intenção mantém-se", disse Paulo Matos ao P2 no intervalo de um dos ensaios. "O ponto de partida é desnudar, desmontar e mostrar a maneira de construir um espectáculo destes, com o público a assistir a todas as etapas." O encenador, que já tinha concebido uma outra versão da peça no âmbito da Lisboa 94-Capital Europeia da Cultura, decidiu trocar o ambiente doméstico original e transportar a acção para uma escola do século XXI. "Britten não desenvolveu a ideia de modo inteiramente explícito, havia apenas uma intenção geral. Hoje, o lugar por excelência na sociedade onde o jovem tem possibilidades de desenvolver um projecto artístico interdisciplinar é a escola. Resolvi criar um ambiente escolar contemporâneo para o mal e para o bem, pois isso comporta um espectáculo muito trabalhoso e sempre à beira de algum caos. A maior parte da peça mostra trinta e muitas crianças a funcionar em turma e muitas vezes em algazarra."

O professor Ricardo

É dentro dessa escola que nasce a ideia de criar um projecto artístico que tem o contributo de todos os seus elementos (professores e alunos). "Até o maestro Osvaldo Ferreira vai participar!", diz Paulo Matos. "Ele é o professor Ricardo, o professor de Informática que estudou música que será convidado a ser o compositor da ópera." Não é a primeira vez que Osvaldo Ferreira pisa um palco como actor. "Já é a terceira vez que o Paulo me obriga! Começou com a História do Soldado, de Stravinsky, e na ópera O Empresário, de Mozart, fez um texto divertidíssimo para mim", diz o maestro. "Se ele continuar a oferecer-me emprego muitas vezes, um destes dias ainda troco a música pelo teatro!", ironiza.

Paulo Matos diz que quis transformar o espectáculo numa construção ao vivo. "Vemos formar-se o grupo da escrita, o grupo da composição, o grupo da investigação, os cenários começarem a aparecer, as paredes a rodar e a mostrar a outra face, martelam-se lareiras, provam-se figurinos, fazem-se ensaios musicais, até que, de repente, a ópera começa porque já está pronta."

A acção da ópera propriamente dita, O Limpa-Chaminés, é mantida no século XIX, levando assim os alunos a fazer pesquisa histórica. Esta conta-nos a história do pequeno Sam (João na versão portuguesa), um miúdo que é obrigado a trabalhar aos nove anos, depois de ter sido vendido pelo pai aos limpa-chaminés. Um dia fica preso na chaminé na casa de uma família (na versão original é a mesma família que vemos na primeira parte do espectáculo), que o ajuda a libertar-se de uma vida de escravidão.

No texto teatral que escreveu, Paulo Matos criou também um paralelo com esta situação. "Na pesquisa das razões dramatúrgicas pensei muitas vezes: como é que dentro de uma escola contemporânea se havia de criar uma história à volta de um limpa-chaminés? Então lembrei-me que podia surgir uma criança excluída da escola - como temos tantas; infelizmente, os últimos números indicam um alarmante abandono escolar no 9.º ano - e maltratada pela família." Uma noite, essa criança entra na escola talvez para roubar comida ou dormir num cantinho e fica presa nas condutas do ar. O encenador explica que a situação permite até construir uma cena de chamamento dentro da conduta com um trecho musical de Britten igual ao que se ouve depois na ópera, quando João fica preso na chaminé.

37 crianças

No que diz respeito à selecção dos intérpretes, o trabalho começou há vários meses, quando foi lançado o desafio às escolas de música de Lisboa. Das dezenas de crianças ouvidas em audição foram seleccionadas 37. Nos primeiros ensaios procedeu-se à escolha dos melhores protagonistas para a ópera e numa outra fase os maestros Victor Paiva (responsável pelo coro) e Osvaldo Ferreira iniciaram a preparação musical. Os participantes têm idades que oscilam entre os 8 e os 17 anos e para as personagens principais da ópera há três elencos. Os papéis dos adultos são feitos por cantores profissonais (Sónia Alcobaça, Maria Luísa de Freitas, Luísa Barriga, Luís Rodrigues, João Queirós, entre outros) e a componente instrumental é assegurada por jovens músicos, vários deles em início de carreira.

"Num projecto destes, sobretudo quando reconhecemos que há algum talento, é triste para algumas das crianças verem os outros fazer os papéis principais e eles não terem essa oportunidade. Daí que arranjámos espaço para três elencos", explica Osvaldo Ferreira. "É importante que todos sintam o que é estar em cima do palco e a dificuldade e responsabilidade que isso implica. Mas o mais importante no projecto não é o número de linhas que as crianças cantam ou o número de frases que dizem, mas a experiência." Osvaldo Ferreira elogia ainda a audácia de Paulo Matos na criação de uma parte teatral "muito complexa e trabalhosa", onde se correm "riscos enormes" devido à quantidade de pessoas em palco.

A peça de Britten prevê também momentos em que o público (crianças e adultos) se possa juntar ao coro da ópera e entoar algumas das canções. Os textos e partituras encontram-se disponíveis no site da Gulbenkian, mas no momento do espectáculo haverá oportunidade de as aprender. "Durante a parte teatral há um momento em que o professor já passou para a função de maestro e ensaia com o público as canções, cujas letras serão projectadas num ecrã", explica Paulo Matos. "Na minha outra experiência, em 94, nem todo o público cantou. Mas há sempre uma parte que traz as canções preparadas e outra que é contaminada na altura. Cria-se então um ambiente mágico. É a sensação de que cada um também faz parte do espectáculo."

Osvaldo Ferreira considera Let's Make an Opera uma "criação muito feliz" de Britten, compositor que dedicou uma importante parte da sua produção às crianças, jovens e músicos amadores. "As melodias e outros recursos chegam muito perto do imaginário das crianças. É, por exemplo, o caso da Canção do Marinheiro. A peça tem momentos muito divertidos mas também líricos no sentido mais terno, como a canção da noite. E as correrias e as pantomimas que servem de ligação entre as cenas têm até um pouquinho de linguagem cinematográfica."

O maestro refere que Britten fez questão de introduzir alguns ritmos mais difíceis com um intuito pedagógico, por exemplo passagens em compasso de cinco por quatro, com a intenção de obrigar os jovens a trabalhar ritmos que não são o tradicional quaternário ou ternário. Os solistas têm também os seus momentos de dificuldade. "Britten não quis dar tudo de mão beijada e procura desenvolver as capacidades musicais dos participantes. Eu tenho insistido para que eles façam tudo com o maior rigor, mas temos de ter a consciência de que não são profissionais. A intenção é fazer o melhor possível."

Também a instrumentação é muito original, incluindo quarteto de cordas, piano a quatro mãos e percussão. "Foi escolhida por razões práticas, já que é uma orquestra descartável bastante fácil de obter. A obra pode ser feita num auditório ou pequeno auditório ou mesmo numa sala pequenina sem fosso. Funciona muito bem, pois a música está muito bem escrita e a peça tem todos os condimentos para resultar num óptimo espectáculo."

Texto: Cristina Fernandes

in Jornal Público 19 de Junho de 2009

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