sábado, 3 de janeiro de 2009

Outro Fim - Mais uma crítica



Jornal Expresso / Revista Actual
03/01/2009


Texto de Jorge Calado

"No fim é que está o começo


Estreou «Outro Fim», a ópera de Vieira Mendes e Pinho Vargas que marca o fim do ano musical.

TARDOU mas arrecadou. O pretexto duma boa ópera é um bom libreto, e este surgiu há cinco anos, quando a Culturgest encomendou a José Maria Vieira Mendes o texto para uma jovem ópera de câmara. Não pegou logo, mas há males que vêm por bem. O compositor certo - António Pinho Vargas (APV) - acabaria por o encontrar, num feliz caso de serendipidade. Outro Fim é um libreto inteligente, misterioso, económico e eminentemente cantável. Que um dramaturgo português, sem prática de ópera, seja capaz de produzir uma obra-prima é caso para embandeirar em arco. Quando, finalmente, se ouve tal texto a pulsar e a viver através duma música de altíssima qualidade e de uma encenação estimulante (embora, às vezes, problemática), estamos a assistir a um milagre.


De que trata Outro Fim ? Do desejo de sobrevivermos sendo outros, que é, afinal, o tema da própria ficção teatral. O autor desdobra-se nos seus personagens e permite ao intérprete fazer o mesmo. Eu sou vários, e nesta vontade de me unir ao outro acabo por ser um só. No caso de Outro Fim, a alteridade e ambivalência funcionam porque estão muito bem estruturadas dramaticamente, no espaço e no tempo. Cinco personagens (Mãe, Mulher, Homem, Irmão e Cunhada) em três lugares (casa da Mulher e Mãe, café e casa do Irmão e Cunhada), ao longo das quatro estações do ano. Um pentagrama social habita uma tríade espacial durante a quadratura do ano. Com o triângulo, o quadrado e o rectângulo é possível formar os cinco poliedros platónicos; 3, 4 e 5 (cuja soma é 12) são também a base pitagórica de muita boa música. A trama é simples: Homem e Mulher apaixonam-se. Irmão (do Homem) e Cunhada esperam o primeiro filho. Homem foge (motivos políticos?), mas envia cartas à Mulher através do Irmão. Irmão apaixona-se pela Mulher. Homem regressa. Irmão mata Homem e Cunhada (que é a sua mulher). A Mãe volta ao princípio e tudo pode recomeçar. Será que o fim será igual?


Como os personagens não têm nomes, o Irmão pode usurpar o lugar do Homem, tanto mais que a Mulher é escritora (de cartas, entre outras ficções). (Vieira Mendes reconhece a importância da cena de Persona, de Ingmar Bergman, em que os rostos de duas mulheres - personagens?, actrizes?, amantes do realizador? - se sobrepõem.) Quanto à Mãe, é a pitonisa das tragédias gregas. Procura decifrar as formas - nuvem, árvore ou rosto (contornos e sombras na caverna de Platão?) - e abre e fecha Outro Fim recitando as mesmas palavras: «sombra ou um rosto», o princípio de toda a ficção. Por outras palavras, no fim está o começo (o que não significa que o próximo fim seja o mesmo). Este é um libreto sobre a invenção literária e a criação artística em geral. Onde está a realidade? Como diz a Mãe, «A minha filha foge/para dentro de um caderno/vive numa página/mergulha no papel.» Quando tudo fica dito nesta estória acelerada, os personagens reduzem-se a um - o escritor (e compositor).


Pinho Vargas é um músico que cultiva a heteronímia. Além de ensaísta notável, é um homem do jazz e um clássico contemporâneo, com produção variada de grande qualidade (Outro Fim é a sua quarta ópera). O encontro dum dramaturgo e dum compositor atraídos pela alteridade funciona magnificamente. À divisão (ou multiplicação) dos eus segue-se a síntese, por exemplo, na união do casal: «Tu és meu.../Eu sou tu», cantam a Mulher e o Homem; ou as simetrias do «Ai, matei! Ai, morri!», do Homem. Pinho Vargas não segue rumos fundamentalistas; bebe onde melhor entende. Há uma grande liberdade composicional - até na divisão orquestral. As cenas no café adquirem um «beat» vital graças aos vários «combos» que APV traz para o palco (cordas, mas também clarinete/oboé, pianoforte e percussão). De resto, os seus objectos e «gestos» musicais são isomorfos dos ritmos do libreto, das suas rimas e repetições. O texto presta-se a ariosos (por exemplo, o «Todos os dias como criança», da Mulher, ou o «Perco a vista», do Homem, com violino «obbligato»), e até a um belíssimo, comovente dueto de amor entre o Homem e a Mulher (que ocorre no Outono). Tudo, na partitura, é bem pensado, até os interlúdios gestuais de notas líquidas no piano (o seu instrumento). A amplificação (discreta) justifica-se pela acústica da sala.


André E. Teodósio, responsável pela encenação e espaço cénico (em parceria com Vasco Araújo), abriu cinematicamente a montagem anulando as fronteiras entre cenas. A fluidez teatral é parte integrante da inevitabilidade dramática. Os intérpretes deambulam pelos bastidores (por exemplo, para fumar um cigarro ou beber um copo) ou improvisam uns passos de dança ao som contagiante da música. Assim se reforçam os vários eus. Há os personagens que, por acaso, são interpretados por actores que são pessoas que escolheram ser cantores (sem esquecer que, nesta ópera, os instrumentos são também «dramatis personae»). Todos pirandelliamente à procura dum sentido para Outro Fim. Há um simpático ambiente artesanal (a pistola que nem sequer é de papel, mas no papel), embora Teodósio ignore deliberadamente várias indicações do dramaturgo e introduza alguns postiços desnecessários. Gostei dos figurinos de Mariana de Sá Nogueira (repararam nos sapatos?).


O espectáculo contou com cinco excelentes cantores, bem dirigidos pelo encenador. Julgo que APV compôs a ópera para «estes» cantores - e isso nota-se. O facto de Larissa Savchenko (Mãe) acusar uma certa usura vocal não comprometeu a eficácia da representação. Luís Rodrigues (Homem), que é hoje um veterano das óperas de Pinho Vargas (criou o Édipo, a Tragédia de Saber, em 1996), foi primoroso, e a voz cheia e rica de matizes de Sónia Alcobaça (Mulher) operou maravilhas. Coube-lhes o momento alto da partitura - o encanto do dueto de amor, justamente abençoado pela Mãe com uma chuva de ouropel. Mário Alves e Madalena Boléo formaram um casal impecável. Prestação virtuosística de elementos da Orquestra Sinfónica Portuguesa. Apresentada em co-produção com o São Carlos, Outro Fim constitui uma homenagem ao saudoso Manuel José Vaz, primeiro presidente da Culturgest e antigo administrador do São Carlos, iniciador deste projecto.


A frustração maior é não conseguir ouvir novamente Outro Fim (assisti à segunda e última representação), até porque só quando cheguei ao fim do espectáculo é que entendi o seu início, 90 minutos antes. Sem partitura nem gravação à vista, fico-me com a fruição sensível duma obra-prima, sem possibilidade de confirmação (ou refutação) racional. Este é outro drama da criação contemporânea - aquilo a que APV chama produção «site-specific». É verdade que era assim que Händel trabalhava (o que lhe permitia reciclar o material), mas as circunstâncias eram outras. Será que a Casa da Música, o Teatro São João ou o CCB se aventuram a quebrar o enguiço do «site-specific»? Se a música fosse comisserável, com as concomitantes ligações perigosas entre arte e dinheiro - como acontece nas artes plásticas -, há muito que o problema estaria resolvido..."

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