quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A Africana - Teatro Maria Matos



A AFRICANA, um espectáculo Cão Solteiro & Vasco Araújo a partir da ópera homónima de Giacomo Meyerbeer com texto de José Maria Vieira Mendes. 

5.7.9.12.14.16 de Dezembro de 2012 
(21:30 / Domingos às 18h)

Adaptação Musical e Direcção: Nicholas McNair

Actores: Bernardo Rocha, Luís Magalhães, Noëlle Georg, Patrícia da Silva, Paula Sá Nogueira, Paulo Lages

Solistas: Marina Pacheco, Sónia Alcobaça e Vasco Araújo

Coro Gulbenkian

Figurinos: Mariana Sá Nogueira

Luz: Daniel Worm d'Assumpção


"A: Cheguei ao país maravilhoso. Ao desconhecido. Não estou em mim. Estou do outro lado. Sou a invenção do mundo. Sou o grande Ó. Regressei ao paraíso. O tempo é redondo como a terra. O princípio é igual ao fim. Sou Adão e Eva e descobri o que já foi descoberto. Sou a globalização. Sou a heterogeneidade. E a imortalidade. E tanta coisa que não caibo em mim. Olho em volta e é tudo tão...é tudo tão...é tão...é tão...é tão...diferente, exato, é essa a palavra: diferente. Será que isto é um lugar comum? Ou virá a ser? Vou ganhar um prémio. Está garantido. Tenho de voltar e contar. Que palavras é que vou utilizar? Isto não se escreve nem diz. É...é tudo tão...é tão...é tão...diferente, exato, é essa a palavra: diferente. Será que isto é um lugar comum? Estão todos a olhar para mim. Sou a minoria. Sinto-me tão...tão...tão...diferente, exato, é essa a palavra: diferente. Será que isto é um lugar..."

















Infestados de identidade

28.11.2012 - Ana Dias Cordeiro
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Vasco Araújo e a companhia de teatro Cão Solteiro voltaram a trabalhar juntos: desta vez a partir de uma ópera de Giacomo Meyerbeer. A Africana está a partir de dia 5 no Maria Matos


Baralhar e fundir expressões artísticas diferentes, num mesmo palco, é uma forma de fazer teatro a que a companhia Cão Solteiro já habituou o seu público. A Africana, a partir da última ópera do compositor alemão Giacomo Meyerbeer (1791-1864) com o mesmo nome, é disso um exemplo. É o segundo projecto que junta esta companhia a Vasco Araújo. O artista plástico cria, com a actriz e encenadora Paula Sá Nogueira, um espectáculo em que canta como solista, ao lado de duas jovens sopranos profissionais, Sónia Alcobaça e Marina Pacheco - e que tem estreia esta quarta-feira, dia 5, no Teatro Maria Matos em Lisboa (até dia 16).

A cena está pensada como uma escultura viva, uma performance. São dois grandes tabuleiros de terra - porque aqui se fala da ocupação de um território - delimitados por um elástico, uma linha concreta. A linha que separa o espectáculo de uma suposta encenação (ou mesmo de um ensaio), essa, é ténue, como que a apelar a uma confusão, ao questionamento do valor dos contornos bem definidos que nos separam do outro e enclausuram cada ser dentro dos limites da linguagem. Um ser é também abstracto e variável; um material que se deforma, que se transforma e que encontra uma definição no confronto com a diferença.

A ideia em A Africana é, por isso, apelar ao maior número de sentidos possível, diz Paula Sá Nogueira. "Levar a ópera ao limite" - com a arte visual, o canto, a música, o texto escrito para quatro personagens e um coro. As cenas de actores alternam com as dos solistas - e por vezes com os solos de alguns cantores do coro da Fundação Calouste Gulbenkian, dirigidos e acompanhados pelo maestro Nicholas McNair, que escolheu os excertos da ópera e fez os arranjos (há três anos, o músico britânico também se sentou ao piano na primeira produção conjunta da Cão Solteiro com Vasco Araújo, A Portugueza). A dimensão política, do confronto simbólico, está mais presente no texto. A do amor no canto e na música.

Com libreto original de Eugène Scribe, A Africana conta uma ficção imaginada a partir da vida do navegador português Vasco da Gama, que parte num navio à procura de um mundo novo. Inês, forçada pelo pai a casar com D. Pedro, está apaixonada por Vasco. Este também é amado por Selika, amor que para ela é proibido, por ser escrava. Também há Nelusco, que ama Selika e quer vingar-se de Vasco, sabendo que se os descobridores puserem o pé no novo mundo será o seu fim.

A partir desta história de poder, o dramaturgo José Maria Vieira Mendes escreveu um texto original que coloca a pessoa face a si mesma e a olhar-se através do outro. O discurso sobre identidade está de tal maneira presente que "infesta", diz: "É o princípio da existência, porque é uma existência baseada na linguagem e nós não podemos sair daqui." Explica: "A ideia no texto é a de que estamos infestados por um discurso sobre a identidade. Um discurso com uma história longuíssima, que tem um peso fortíssimo, e do qual não nos conseguimos livrar. Se nos livrarmos dele deixamos de existir, porque toda a nossa existência está dependente de um discurso sobre a identidade."

Nesse sentido, Vasco Araújo regozija-se com a descoberta e a escolha de A Africana. Há nesta ópera um interesse muito profundo por um tema ao qual não quer resistir (e com o atractivo de ter a História de Portugal, mesmo que distorcida, em fundo): a questão da alteridade e da globalização e, no limite, a do conflito connosco mesmos. "É das poucas óperas que têm a ver com a História de Portugal. Mas o que nos interessa é trazer isto para os dias de hoje", diz ao Ípsilon.

Maioria e minorias

Nelusko resiste - a sua questão é "voltar a ser a maioria". Com ele, Selika é minoria numa ilha onde é, ao mesmo tempo, rainha e escrava. Vasco da Gama define-se através da conquista de novos territórios: "Eu não escrevo nem componho. Eu descubro e expando. (...) Dêem-me barcos. Dêem-me homens. Estou farto que me digam quem sou. Deixem-me descobrir a minha identidade. Expandir o meu ser. Estou aqui para fazer história."

Para uns, a identidade ganha sentido pela resistência ou pelo desejo de descoberta. Para outros, pela descoberta do amor ou da poesia - "No meu mundo tudo é possível. Porque o meu mundo é feito de palavras", diz Dom Pedro. "Sou um poeta. E o desígnio de um poeta é olhar o mundo e imaginar as consequências."

A identidade, em confronto com a diferença, cria estranheza. E a estranheza é por vezes crua em palavras e gestos, como metáfora da intolerância em tempos de globalização e necessidade (por vezes desejada, outras quase forçada) de integração.

"O meu nome é Selika. Sou rainha. Mas estou confusa. Deve ser as dificuldades de integração. Vocês cegam-me a vista com tanta luz."


As personagens têm nome, mas as suas falas distribuem-se por pessoas a quem são dadas letras - A, P, J, D - sem uma ligação fixa aos actores (Patrícia Silva, Paula Sá Nogueira, Bernardo Rocha e Paulo Lages), como numa dança de cadeiras e de falas. Como se estar no lugar do outro ajudasse a descobrir novos mundos - não exactamente geográficos, mas interiores.